sexta-feira, 25 de junho de 2010

A fé e as trinta moedas


Sílvio Lanna
Mais uma polêmica envolvendo jogadores da seleção brasileira capitalizou atenções nesta semana: a troca de farpas entre Kaká e o jornalista Juca Kfouri. Segundo o artilheiro, Juca o perseguia em razão de sua crença evangélica.
Juca afirmou-se ateu em video distribuído pela Internet e proferiu algumas afirmativas que, aparentemente, só comprovam o explícito preconceito afirmado por Kaká. Vejamos (parcialmente) o que disse o jornalista: "Kaká se engana e enfiou Jesus onde Jesus não foi chamado. Critico sim o merchandising religioso que ele e outros jogadores da Seleção costuma fazer, tentando nos enfiar suas crenças goela abaixo. Um tal exagero que a Fifa tratou de proibir..."
Agora, prestemos atenção ao outro lado da moeda: há outras peças de merchandising que o sr. Juca não critica. É o caso da cerveja Brahma, cujas inserções publicitárias são repetidamente divulgadas em todas as mídias e em vestuários dos jogadores. Mais ainda, vincula o uso da bebida à força dos "guerreiros brameiros" e às vitórias que poderá a seleção obter.
Alguém em sã consciência acha que esporte e álcool formam uma combinação feliz? Não acredito. O que ocorre é que a Brahma (assim como poderia ser o cigarro ou outra droga) passa a ser livremente aceita após despejar milhões de reais em verbas de patrocínio.
Portanto, seu Juca, não precisamos discutir o mérito de professarmos ou não uma religião. Vamos nos ater simplesmente aos atos de publicidade.
Por que o senhor acha que a crença de Kaká não pode nos ser enfiada "goela abaixo" da mesma forma que a cerveja, o guaraná, o banco e outros?
Aparentemente o senhor não é somente um ateu, é também um mercenário...

A AMEAÇA DOS TRANSGÊNICOS


Sílvio Lanna
A Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio), órgão do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior teve em sua pauta de junho a liberação do arroz transgênico LL62 para plantio em território brasileiro.
São sementes geneticamente modificadas e patenteadas pela multinacional Bayer para resistir ao uso do agrotóxico glufosinato de amônio (também fabricado pela Bayer). Desta forma, a praga morre mas a planta não sofre nenhum dano. Em consequência aumenta a produtividade, melhora a aparência e cresce o lucro.
Tudo bem, não fossem as acusações que sofrem as variedades transgênicas de arroz, milho, soja e outras. No caso específico do glufosinato que, incorporado ao arroz, passa aos tecidos de seus consumidores após a ingestão, testes efetuados em ratos provocaram, dentre outros males, alterações no sistema nervoso, tremores, consulsões e reações alérgicas. Além disto, ficou comprovado que seus resíduos se acumulam no fígado e nos rins (com consequências certamente perigosíssimas), sendo ainda secretado no leite (o que compromete até mesmo aqueles indivíduos que não participam diretamente de seu consumo).
No aspecto econômico as variedades transgênicas têm também provocado sérios danos. Induzem o surgimento de ervas daninhas dotadas de resistência e possuem alto poder de dominação sobre outras espécies cultivadas em sua vizinhança. Há registros de lavouras inteiras de variedades tradicionais que foram tomadas pelas variedades modificadas, até o ponto que aquelas vieram a desaparecer.
Há também casos de plantas concorrentes, como o arroz vermelho no Rio Grande do Sul. Trata-se de variedade considerada daninha e compatida atualmente com herbicidas específicos. Quando ocorre o cruzamento do transgênico com o vermelho, o que resulta é uma erva prejudicial altamente resistente ao veneno, cujo combate, em princípio, se faz com a utilização de grandes quantidades de produtos químicos, todos prejudiciais à saúde humana.
Entidades como o Greenpeace e a Embrapa vêm continuamente levantando vozes na tentativa de frear a utilização de variedades transgênicas no país, mas as dificuldades são grandes, basicamente por dois fatores:
- Os brasileiros comuns temos pouco conhecimento sobre o tema, que nem mesmo é personagem dos telejornais diários. Assim, aqueles que condenam a manipulação genética de alimentos frequentemente são considerados retrógados e suas tentativas tidas como enfrentamento à modernidade e ao desenvolvimento.
- Os valores envolvidos são gigantescos, uma vez que companhias como a Bayer, a Monsanto e outras pretendem a padronização e a oligopolização da oferta de sementes em todo o mundo. Afinal, uma vez imposta a utilização de seus produtos (devidamente patenteados), que outras empresas poderão competir em custos e preços finais? Acrescente-se a isto o fato de que os defensivos agrícolas para os quais a manipulação foi realizada também são produzidos por elas.
A Bayer já esteve envolvida em vários escândalos ligados à produção de cereais geneticamente modificados. Em 2006 verificou-se que parte dos estoques norte-americanos de arroz estavam irremediavelmente contaminados pela variedade Liberty Link LL601, produzida pela Bayer CropScience. O fato provocou prejuízos de aproximadamente um bilhão e meio de dólares e, quando a contaminação foi percebida, tinha atingido também alguns países importadores do produto. Considera-se que mais de sessenta por cento do volume de exportações foi danificado pelo LL601. Importante lembrarmo-nos de que a utilização dessa variedade foi autorizada pelo governo americano exclusivamente em plantios restritos a lavouras experimentais.
Esse escândalo, principalmente por ter ocorrido nos EUA, serviu para que o resto do mundo prestsse mais atenção ao problema. Assim é que no caso da "nossa semente LL62", as pressões exercidas pelo Greenpeace, Embrapa e outros órgãos científicos nacionais provocaram na Bayer a retirada do pedido de autorização por parte do CNTBio. O processo, há mais de um ano na pauta, foi suspenso, segundo a empresa, para "ampliar o diálogo" com as entidades nacionais.
Mero recuo estratégico, entretanto, pois a empresa temia pela negativa de autorização por parte do órgão estatal. Afinal, o pedido poderá ser novamente colocado em pauta quando a empresa desejar.
É importante, portanto, que nos mantenhamos informados sobre temas coo esses, antes que seja tarde demais e nosso arroz com feijão de todo dia carregue consigo ameaças ainda nem imaginadas por nós.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O homem que enxergava o futuro


Sílvio Lanna
Há sessenta e um anos atrás Eric Arthur Blair publicava aquele que viria a ser um dos romances mais lidos e relembrados da história da literatura mundial. A obra, inicialmente denominada "O Último Homem da Europa", foi traduzida pelo mundo afora, transformou-se em produções cinematográficas, inspirou discussões acadêmicas e até hoje mantém sua atualidade. Falamos, na realidade, de George Orwell, pseudônimo adotado pelo autor, e de sua obra "1984". A intromissão de terceiros em nosso cotidiano e, principalmente, em nossa intimidade foi o tema brilhantemente trazido por ele em seu universo ficcional e que se transformou em realidade no século XXI.
Já se vão décadas após 1984, época ambiental do filme, mas o Grande Irmão está cada dia mais presente em nossas ruas, praças, residências, centros de consumo, instituições financeiras, fiscalizando-nos diuturnamente e repetindo à exaustão a célebre frase orwelliana "Big Brother is watching you". É, estamos mesmo sendo observados a cada momento e isto parece não nos incomodar. Já se foi o tempo em que a presença de câmeras bisbilhoteiras nos indignava. Hoje pertencem elas ao cotidiano das grandes cidades e passam despercebidas, não obstante ter-nos na mira todo o tempo. Talvez seja porque trabalham no mais completo silêncio. Acostumamo-nos a interagir somente com aquilo que nos desperta a atenção pelas cores, luzes ou gritos. Afinal, quem se lembra do mendigo solitário que dorme silencioso no passeio? Ou do discreto porteiro por quem passamos por anos a fio no prédio? Ou ainda daquele colega dos bancos escolares que entrava e saía da sala sorrateiramente, mantendo-se mudo durante as aulas?
É, parece que invasão de privacidade tornou-se uma expressão obsoleta... Temos, entretanto, o outro lado da moeda. Se o cidadão de hoje não se importa
em ter a vida monitorada cotidianamente, parece adorar também imiscuir-se na vida de terceiros, para dedicar-se ao cultivo da fofoca e da maledicência. Aí o cidadão se transforma. De investigado incorpora-se nas vestes do Grande Irmão e passa a investigar os outros. E isto em rede nacional, nas sucessivas edições do fenômeno Big Brother. Lembremo-nos de que o BBB 10 registrou picos de até 65% de todas as tvs ligadas no país. No quesito ligações telefônicas essa edição chegou a receber, para um só evento, mais de 100 milhões de chamadas, com as quais os ligadores desembolsaram nada menos que 30 milhões de reais. Convenhamos, nada no país consegue uma atenção e um retorno financeiro tão brilhante e em tão pouco tempo. Os números são impressionantes e nos indicam do que é que o povo brasileiro realmente (e do resto do mundo) gosta. Nenhum outro programa ou evento é páreo. E tudo isto prá quê? Simplesmente para especular a convivência de estranhos que nada de extraordinário fazem. Conversam, brigam, vão ao banheiro, fazem sexo, xingam, dançam, comem, enfim rigorosamente tudo o que nósa mesmos fazemos em nossas casas. Só que nas nossas casas não existe mais aquele buraco de fechadura que usávamos quando crianças. Nem aquele alto de muro sobre o qual buscávamos alguma novidade no quintal do vizinho. No mundo do consumo e do capital o buraco é pago e o alto do muro é alugado - e caro.

Orwell, se pudesse, estaria desferindo gargalhadas irônicas e debochando dos milhões e milhões de telespectadores que, por falta do que mais fazer, investem
seu tempo e seu dinheiro na greta da porta virtual que está disponível a um simples toque no botão do aparelho de TV.
Entre uma risada e outra talvez pense: onde estará o Winston Smith desse tempo? Será que não tem ninguém que se deu conta da realidade e tentou mudá-la? Mas também estará plenamente satisfeito por ter vislumbrado com tanto realismo um mundo que, para a década de quarenta do século passado somente poderia ser concebido pelo uso da mais fértil imaginação. E, convenhamos, Orwell não imaginava a repercussão histórica de sua obra, senão teria concebido outro título, mais perene e abstrato com relação ao tempo.

Parabéns, George, você se tornou famoso, internacionalizou-se, virou adjetivo, sua vida foi vasculhada em busca dos detalhes, soubemos de sua doença, fomos aos lugares que frequentou, estivemos no quarto onde a obra foi escrita, buscamos a fonte de sua inspiração, contabilizamos o número das edições do livro, também o de exemplares e de traduções, enfim, especulamos você e sua vida ao máximo que conseguimos. Nós nos vingamos, e com a mesma moeda...

O galo impertinente



José J. Veiga
Todo mundo sabia que se andava construindo uma estrada naquela região, pessoas que se aventuravam por lá viam trabalhadores empurrando carrinhos, manobrando máquinas ou sentados à sombra, cochilando com o chapéu no joelho ou comendo de umas latas que a empresa fornecia: diziam que eram rações feitas em laboratórios, calculadas para dar o máximo de rendimento com o mínimo de enchimento. Quem fiajava de automóvel conseguia interromper a atividade dos engenheiros, eles vinham solícitos com o capacete na mão dar explicações, mostrar o projeto no papel, esclarecer o significado de certos sinais que só eles entendiam. Mas a obra estava demorando tanto que nos habituamos a não esperar o fim dela; se um dia a boca da estrada amanhecesse com uma tabuleta novinha convidando o povo a passar, acho que ninguém acreditaria, imaginando tratar-se de brincadeira.
Com o passar do tempo os engenheiros foram ficando nervosos e mal-humorados, dizia-se que eles desmanchavam e refaziam trechos enormes da estrada por não considerá-los à altura de sua reputação. Não estavam ali construindo uma simpes estrada; estavam mostrando a que ponto havia chegado a técnica rodoviária. Houve protestos, denúncias, pedidos de informação, mas como as autoridades não sabiam mais de que estrada se tratava, nenhuma resposta era dada; e mesmo que respondessem seria em linguagem tão técnica que ninguém entenderia, nem os mais afamados professores, todos por essa altura já desatualizados com a linguagem nova.
Quem tinha de atravessar a região ia abrindo picadas pelo mato, passando rios com água pelo peito, subindo e descendo morros cobertos de malícia e unha-de-gato. Quando se perguntava a um engenheiro mais acessível quando era que a estrada ia ficar pronta, ele fechava a cara e dizia secamente que a estrada ficaria pronta quando ficasse.
Um dia - as preocupações eram outras, ninguém pensava mais no assunto - anunciaram que a estrada afinal estava pronta e ia ser inaugurada. Depois de uma inspeção preliminar feita altas horas da noite à luz de archotes (com certeza para evitar entusiasmos prematuros), marcou-se o dia da inauguração com a passagem de uma caravana oficial.
O povo não pode ver a estrada de perto nesse dia, tivemos que ficar nas colinas das imediações, havia guardas por toda parte com ordem de não deixar ninguém pisar nem apalpar. Muita gente levou binóculos e telescópios; os telescópios eram difíceis de armar devido à irregularidade do terreno, mas os donos acabaram dando um jeito e conseguiram focalizar a estrada. Quem não tinha aparelhos óticos arranjou-se da melhor maneira, fazendo óculos com as mãos ou simplesmente levando a mão à testa para vedar um pouco a claridade do sol que o asfalto refletia com violência.
Mesmo de longe via-se que a estrada era uma obra magnífica. Havia espaço arborizado entre as pistas, as árvores ainda pequenas, mas prometendo crescer com vigor; trilhas para ciclistas, caminhos para pedestres. As pontes eram um espetáculo, e tantas que se podia pensar que tinham sido feitas mais para mostrar competência do que para resolver problemas de comunicação; em todo caso, lá estavem bonitas e sólidas, pelo menos de longe.
Diante da importância da estrada, com suas pontes, túneis e trevos, o povo esqueceu a longa espera, herança de pais a filhos, esqueceu os parentes e amigos que haviam morrido sem ver aquele dia, esqueceu as voltas que teve que dar, e agora só cuidava de elogiar o trabalho dos engenheiros, o escrúpulo de não entregarem uma obra feita a três pancadas. Alguém sugeriu a colocação de uma placa na estrada, com os nomes de todos que haviam trabalhado nela, mas quando se descobriu que não havia oficina capaz de fazer uma placa do tamanho necessário, não se falando na massa de pesquisa que seria preciso para um levantamento completo, as buscas em documentos antigos, a idéia foi abandonada por inviável.
É triste dizer, mas a euforia durou pouco. Logo depois da inauguração, certas coisas começaram a acontecer, parece mesmo que já no dia seguinte. Pessoas que iam experimentar a excelência da estrada voltavam assustadas, jurando nunca mais passar lá - quando não caíam num mutismo de fazer dó, como se tivessem sofrido um abalo muito grande por dentro. E não podia ser invenção, todos os informes coincidiram.
Os viajantes contavem que iam muito bem pela estrada, embalados pela lisura do asfalto, quando de repente, saído não se sabe de onde, um galo enorme aparecia diante do carro. Não adiantava tocar buzina, ele não se desviava; nem adiantava aumentar a velocidade, ele não se deixava apanhar. Era como se ele fosse puxando um carro para um embasamento de ponte, uma árvore, um marco quilométrico. Quando o motorista conseguia manobrar e escapar do desastre, o galo aplicava outro expediente: saltava para cima do carro e martelava a capota com o bico, e com tanta força que perfurava o aço, deixando o carro como se um malfeitor o tivesse atacado a golpes de picareta.
Nunca se chegou a acordo quanto ao tamanho do galo, as descrições feitas pelos viajantes emocionados iam de pinto a jumento. Talvez cada um tivesse sua razão: quem poderia afirmar que ele não escolhesse um tamanho para cada ocasião? As muitas expedições formadas para apanhá-lo acabaram em completto fracasso. Chegaram a levar redes de pesca manejadas por pescadores exímios, mas sempre o galo escapava pelos vãos da malha. Depois dos pescadores foi a vez dos caçadores, equipadas com armas do último tipo; chegavam, tomavam posição, apontavam - erravam; quando acertavamn, em vez de verem o espalhar de penas, ouviam um guincho de ricochete, mais nada.
Como último recurso apelou-se para o ministério da guerra. Primeiro mandaram um canhão pesado, que só serviu para abrir rombos no leito da estrada. Depois recolheram o canhão e mandaram um tanque com ordem de destruir o galo de qualquer maneira.
Quando o galo apareceu, o tanque perseguiu-o por uma certa distância, como querendo dar-lhe uma oportunidade de fugir inteiro e não voltar. Parece que o galo não entendeu, e continuou fagueiro pensando que estava arrasando o tanque para algum abismo. Os soldados perderam a paciência e abriram fogo, vários disparos a curta distância. O galo não foi atingido, mas o tanque começou a soltar fumaça pelas juntas, rolos cada vez mais escuros, de repente deu um estouro abafado, como de jaca caindo, e pegou fogo de uma vez. Quando as labaredas cessaram, no chão fsó ficou um monte de metal fundido.
Ninguém quis mais usar a estrada, ela foi ficando esquecida e hoje é como se nunca tivesse existido. Se um dia uma raça de homens novos derrubar a mata que lá existir, certamente notará aquela trilha larga coberta de capim e plantas rasteiras; e, investigando mais para baixo, descobrirá a capa de asfalto, os túneis, as pontes, os trrevos e tudo mais , e não deixará de admirar a perfeição com que se construíram estradas neste nosso tempo. Naturalmente tomarão fotografias, escreverão relatórios, armarão teorias para explicar o abandono de uma estrada tão bem acabada. O monte de metal fundido será um enigma, mas algum sábio o explicará como pedaço de planeta caído do alto espaço; talvez o levem para um museu e incrustem uma placa nele para informação aos visitantes.
Quando ao galo impertinente, se ainda existir, seria interessante saber que explicações os descobridores encontrarão para ele e que fim lhe destinarão - mas isso, reconheço, é uma indagação que está muito além do alcance atual da nossa imaginação.


quinta-feira, 3 de junho de 2010

A última crônica

Fernando Sabino

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de correr com êxito mais uns anos nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódio. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "Assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar para fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, torna-se mais evidente pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional de família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os dois lados, a assegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção de bolo com a mão, larga-a no pratinho - um bolo simples, amarelo escuro, apenas uma fatia triangular.

A negrinha contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um aninalzinho. Ninguém mais observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto serve a Coca Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a manininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente, põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a seus pais que se juntam, discretos: "Parabéns prá você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que caiu no colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

O Código de Cidadania do Consumidor


Sílvio Lanna.
Após ser relembrado em 15 de março o Dia do Consumidor, preparam-se as comemorações pelos vinte anos de vigência do seu Código de Defesa.
Não haveria, em princípio, utilidade na festa para normas legais, uma vez que é sua sua essência que sejam cumpridas e pronto.
Não é o caso, entretanto, do CDC. Muito mais que uma lei, ele permitiu cidadania a milhões de consumidores até então mantidos como figuras meramente acessórias na cena econômica. Lembro-me de ter ouvido de familiares em minha saudosa infância em Rio Casca que "TV é isto mesmo, a gente tem que ter sorte na compra." Reclamar defeitos nem pensar, era uma via crucis interminável e que não raras vezes culminava com a desistência do sofrido consumidor. Taxa de juros? Prazo de entrega? Qualidade? Eram aspectos que se mantinham sob inteiro controle dos fornecedores que, a seu critério, os manipulavam livremente.
O CDC teve como principal mérito demonstrar ao cidadão brasileiro, principalmente ao mais simples, que ele não era tão órfão como imaginava. Isto porque, paralelamente à lei consumerista vieram os Juizados Especiais e Procons, que se constituíram no foro onde tais direitos se impunham. Isto porque foram criados com o objetivo de proteção e instalaram-se em ambientes despojados, mais próximos à realidade do cidadão comum.
O Código do Consumidor incomodou, e muito. Não por outro motivo algumas entidades representativas da indústria, comércio e serviços já protagonizaram diversas tentativas de excluir determinadas atividades de sua jurisdição. Tentaram até mesmo sua revogação. Mas ele continua atuante, permitindo que a relação de consumo mantenha-se uma via de mão dupla, em que direitos e deveres se façam valer, sejam quem forem seus agentes.
É também um bom exemplo para quem procura a semente da efetividade das normas legais. Ela não está na forma textual, na aparência ou naqueles que a fazem cumprir. Está, sim, em sua capacidade de interação com aqueles que mais diretamente sejam por ela atingidos, possibilitando que estes saibam de sua existência e se considerem efetivamente protegidos por ela.
O desconhecimento da lei pelas massas sempre foi instrumento de dominação política em nosso país. Talvez seja por isto que alguns segmentos econômicos nada tenham a comemorar com esse aniversário...


Esquecendo o passado

Sílvio Lanna.
O mundo assistiu atônito à ação israelense nesta segunda-feira , em que seus militares invadiram seis embarcações da chamada "Frota da Liberdade", que levava contribuições humanitárias à faixa de Gaza.
Alguns fatores ficaram comprovados: o fato ocorreu em águas internacionais, no comboio não havia armas, bombas ou algo que pudesse se constituir em efetiva ameaça a Israel, os manifestantes não portavam armas de fogo e, ainda, as nove vítimas fatais e as outras feridas foram atingidas por tiros desferidos pelos soldados invasores. A carga levada pela flotilha era realmente de suprimentos (dez mil toneladas) destinados aos 1,5 milhão de palestinos mantidos sob rigoroso bloqueio judeu. Segundo consta, a carga era constituída de alimentos, medicamentos, cadeiras de rodas, materiais de construção, e outros bens de primeiríssima necessidade para os refugiados.
Dentre as manifestações a respeito do incidente, a maior parte condenou o ato, pedindo sua apuração pelo Conselho de Segurança da ONU, além da exigência de desculpas e de indenizações por parte do governo israelense. Em tom semelhante tivemos a manifestação até mesmo da União Européia, por sua chanceler.
Como era de se esperar, o governo americano, sempre por sua Secretária de Estado, limitou-se a uma declaração protocolar em que nem mesmo se refere ao agente das agressões, seu tradicional e incondicional aliado Israel, ou, para os mais realistas, Israeua ou Usael.
O governo israelense tenta justificar o ataque e as mortes alegando
que dentre os integrantes do comboio encontravam-se aproximadamente cem pessoas ligadas ao Hamas e, portanto, considerados terroristas. Reconhece, entretanto, que a flotilha não continha navios de guerra e que seus passageiros e tripulantes não portavam armas de fogo.
Não obstante sua insustentável posição, o premier Netanyahu continua alegando que as forças de defesa sionistas agiram em legítima defesa e que as reações do mundo não passam de hipocrisia. Reitera sua defesa do bloqueio sob a alegação de que ele visa defender Gaza da instalação de uma "base iraniana de mísseis".
A desastrada intervenção israelense somente serviu para munir seus inimigos de considerável armamento diplomático, para isolá-lo frente à opinião pública internacional e, de quebra, deixar em constrangedora situação seu aliado de todas as horas - os Estados Unidos. Desta vez nem mesmo Hillary Clinton, em sua incansável busca por um novo conflito armado internacional, pode expressar sua verdadeira opinião, limitando-se a manifestações evasivas.
A Turquia, pátria de todas as vítimas fatais, manifestou-se duramente, chegando a ameaçar com o rompimento de relações diplomáticas com Israel. Isto é particularmente preocupante, uma vez que o governo turco tem sido importante mediador entre árabes e judeus em busca de paz no Oriente Médio.
Além dos resultados trágicos da operação militar, ficam expostos como exemplo para o planeta os atos inconsequentes praticados por quem elege a violência como instrumento político.
O retorno da extrema direita israelense ao poder não trouxe somente o recuo nas tentativas de paz para a região. Trouxe também o medo de que possa se romper o tênue equilíbrio de forças que mantém em potencial um imenso conflito que, gerado no Oriente Médio, pode se estender ao resto do mundo.