sexta-feira, 4 de junho de 2010

O homem que enxergava o futuro


Sílvio Lanna
Há sessenta e um anos atrás Eric Arthur Blair publicava aquele que viria a ser um dos romances mais lidos e relembrados da história da literatura mundial. A obra, inicialmente denominada "O Último Homem da Europa", foi traduzida pelo mundo afora, transformou-se em produções cinematográficas, inspirou discussões acadêmicas e até hoje mantém sua atualidade. Falamos, na realidade, de George Orwell, pseudônimo adotado pelo autor, e de sua obra "1984". A intromissão de terceiros em nosso cotidiano e, principalmente, em nossa intimidade foi o tema brilhantemente trazido por ele em seu universo ficcional e que se transformou em realidade no século XXI.
Já se vão décadas após 1984, época ambiental do filme, mas o Grande Irmão está cada dia mais presente em nossas ruas, praças, residências, centros de consumo, instituições financeiras, fiscalizando-nos diuturnamente e repetindo à exaustão a célebre frase orwelliana "Big Brother is watching you". É, estamos mesmo sendo observados a cada momento e isto parece não nos incomodar. Já se foi o tempo em que a presença de câmeras bisbilhoteiras nos indignava. Hoje pertencem elas ao cotidiano das grandes cidades e passam despercebidas, não obstante ter-nos na mira todo o tempo. Talvez seja porque trabalham no mais completo silêncio. Acostumamo-nos a interagir somente com aquilo que nos desperta a atenção pelas cores, luzes ou gritos. Afinal, quem se lembra do mendigo solitário que dorme silencioso no passeio? Ou do discreto porteiro por quem passamos por anos a fio no prédio? Ou ainda daquele colega dos bancos escolares que entrava e saía da sala sorrateiramente, mantendo-se mudo durante as aulas?
É, parece que invasão de privacidade tornou-se uma expressão obsoleta... Temos, entretanto, o outro lado da moeda. Se o cidadão de hoje não se importa
em ter a vida monitorada cotidianamente, parece adorar também imiscuir-se na vida de terceiros, para dedicar-se ao cultivo da fofoca e da maledicência. Aí o cidadão se transforma. De investigado incorpora-se nas vestes do Grande Irmão e passa a investigar os outros. E isto em rede nacional, nas sucessivas edições do fenômeno Big Brother. Lembremo-nos de que o BBB 10 registrou picos de até 65% de todas as tvs ligadas no país. No quesito ligações telefônicas essa edição chegou a receber, para um só evento, mais de 100 milhões de chamadas, com as quais os ligadores desembolsaram nada menos que 30 milhões de reais. Convenhamos, nada no país consegue uma atenção e um retorno financeiro tão brilhante e em tão pouco tempo. Os números são impressionantes e nos indicam do que é que o povo brasileiro realmente (e do resto do mundo) gosta. Nenhum outro programa ou evento é páreo. E tudo isto prá quê? Simplesmente para especular a convivência de estranhos que nada de extraordinário fazem. Conversam, brigam, vão ao banheiro, fazem sexo, xingam, dançam, comem, enfim rigorosamente tudo o que nósa mesmos fazemos em nossas casas. Só que nas nossas casas não existe mais aquele buraco de fechadura que usávamos quando crianças. Nem aquele alto de muro sobre o qual buscávamos alguma novidade no quintal do vizinho. No mundo do consumo e do capital o buraco é pago e o alto do muro é alugado - e caro.

Orwell, se pudesse, estaria desferindo gargalhadas irônicas e debochando dos milhões e milhões de telespectadores que, por falta do que mais fazer, investem
seu tempo e seu dinheiro na greta da porta virtual que está disponível a um simples toque no botão do aparelho de TV.
Entre uma risada e outra talvez pense: onde estará o Winston Smith desse tempo? Será que não tem ninguém que se deu conta da realidade e tentou mudá-la? Mas também estará plenamente satisfeito por ter vislumbrado com tanto realismo um mundo que, para a década de quarenta do século passado somente poderia ser concebido pelo uso da mais fértil imaginação. E, convenhamos, Orwell não imaginava a repercussão histórica de sua obra, senão teria concebido outro título, mais perene e abstrato com relação ao tempo.

Parabéns, George, você se tornou famoso, internacionalizou-se, virou adjetivo, sua vida foi vasculhada em busca dos detalhes, soubemos de sua doença, fomos aos lugares que frequentou, estivemos no quarto onde a obra foi escrita, buscamos a fonte de sua inspiração, contabilizamos o número das edições do livro, também o de exemplares e de traduções, enfim, especulamos você e sua vida ao máximo que conseguimos. Nós nos vingamos, e com a mesma moeda...

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