domingo, 1 de agosto de 2010

Pedagogia da violência



Sílvio Lanna
Muitos discutem apaixonadamente na mídia e nos botecos o chamado "Estatuto da Palmada". Primeiramente, o tema não passa de projeto de lei propondo alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Civil, de autoria da deputada federal Maria do Rosário. Pretende ela que ao ECA sejam incorporados alguns artigos, dentre os quais o de nº 18A, que resume bem a questão:
A criança e o adolescente têm direito a não serem submetidos a qualquer forma de pu punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos ou em locais públicos.
No CC a alteração ocorre no inciso VII do art. 1634 e é assim redigida:
Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
(...)
VII. Exigir, sem o uso de força física, moderada ou imoderada, que lhes prestem obediência respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Em meu entender, a segunda parte do normativo incorporado ao ECA é desnecessária. Isto porque episódios de violência eventualmente praticados por professores ou a exposição de crianças ao constrangimento público já estão suficiente contemplados no suporte jurídico já em vigos, abrangente em boa medida.
Quanto à adoção de castigos pelos pais, sábia foi a legisladora ao estender dos limites do "moderado" até os do "imoderado" as condutas antijurídicas e passíveis de punição legal. Desta forma, nenhum castigo será tolerável, nenhuma forma "branda" de violência será permitida.
Não obstante a indignação de alguns pais e até mesmo a interferência de alguns "educadores" na defesa de tapinhas e pequenos safanões como inevitáveis na educação infantil, a alteração legal busca recolocar os filhos na condição que lhes pertence: a de seres humanos, que não necessitam aprender pela dor.
Uma pergunta parece-me inevitável: se permitimos a violência, ainda que "moderada" contra crianças, por que não a aceitamos também, na mesma medida, contra adultos? Por que não permitimos que uma ofensa verbal seja revidada também com um tapinha ou que possamos esmurrar, de forma "branda", o ofensor? Não seria um ato de completa coerência?
Só que no segundo caso o revide é certo, pois o agredido não se deixará atingir sem aplicar de volta a mesma agressão. A criança, entretanto, apanhará sem oferecer resistência ou replicar as pancadas. Até porque quem bate é fisicamente desproporcional e moralmente coator. Mero ato de covardia, portanto.
Não devemos imaginar que este exercício de retórica retrata simplesmente uma questão interna às unidades familiares na educação infantil. Vai muito além disto. Avança pela permissividade às "pequenas" torturas praticadas pela polícia no dia a dia das delegacias, pelos "módicos" abusos cometidos por alguns patrões no trato com seus empregados, pelas "leves" agressões sexuais de que são vítimas diversas crianças no interior de seus lares, enfim, as palmadas são somente uma nuance em um estado de violência maior. Não será ele redimido por nossa inércia e complacência.
Não por outro motivo o jornal Folha de S Paulo, em sua edição de fevereiro de 2009 referiu-se ao período militar no Brasil como "ditabranda". Ao ver do redator e dos responsáveis pelo periódico, foi branda porque produziu menos cadáveres que a similar na Argentina ou porque não matou o presidente deposto, como no caso dos hermanos chilenos. Não obstante a legião de torturados, de desaparecidos políticos, de assassinados, de mutilados física e moralmente ocorridos por aqui. De minha parte, cancelei imediatamente a assinatura para nunca mais refazê-la.
Essa é a linha da permissividade, que admite graduações para o mal, como se uma piadinha sobre negros não envolvesse preconceito racial, ou como se favelados fossem criminosos ou, ainda, como se moradores de rua fossem resultantes de seu próprio fracasso.
A educação dos filhos não necessita em nenhum momento descambar para a violência, a não ser que feltem argumentos ou capacidade para os pais lidarem com situações em que se aproximem os limites da paciência.
A sabedoria da palavra de Deus já determinava, em Efésios 6.4:
E vós, pais, não provoqueis a ira a vossos filhos, mas criai-os na doutrina e admoestação do Senhor.
Discordar da violência, entretanto, não é o mesmo que discordar da autoridade. Esta deve estar presente em todos os momentos em que seja necesária. Mesmo que alguns educadores contemporâneos possam imaginar de forma diferente, a melhor solução é aquela em que os pais orientam - e quando necessário mandam - e os filhos aceitam - e quando necessário simplesmente obedecem.
Lembremo-nos da imensa força de duas palavrinhas (talvez as mais poderosas já inventadas pelo ser humano): SIM e NÃO. São elas o mais perfeito antídoto para a violência caseira. Mas contêm em si um segredo: só funcionam se utilizadas em sua inteireza e alternativamente. Sim não pode ter gosto de não e vice versa. Da mesma forma, uma cadência interminável de qualquer delas também não produz os efeitos esperados. É como o tempero, onde açúcar e sal têm fortes personalidades e constituem-se em dicotomia culinária, mas atingem a perfeição quando são utilizados de forma dosada e complementar.
A sensação de contemporaneidade nos ilude em nosso dia a dia. Na educação ela pode produzir a falsa sensação de que liberdade é uma via sem barreiras, isenta de obstáculos. Mas não é assim. Basta que nos lembremos que, para mantermos a nossa, precisamos obedecer regras, gastar dinheiro, tempo e trabalho. Enfim, esforços às vezes imperceptíveis mas sempre presentes.
É tudo uma questão de consciência de que os limites que podem ser entendidos como usurpação não passam, na realidade, de prática didática. E esta é de crucial importância no processo evolutivo daqueles que apenas caminham para as turbulências adolescentes para, somente depois, atingirem a idade adulta (momento em que, teoricamente, poderão repetir nos filhos as experiências tidas ou sofridas na infância).

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