domingo, 22 de abril de 2012

Pelo sertão de Nosso Senhor



                                                                           Sílvio Lanna

Estrada de pó, muito pó. Tempo de vento, muito vento, agosteado pela força da natureza, janeirado pelo calor de matar.

O tufo de poeira cobria todos os matos, de lavoura a capim e tudo quanto é pau retorcido que por aquelas bandas anunciava o cerradão brabo.

Fim de ano vem a chuva trazendo cheiro de esperança e explodindo a brotação por tudo o que é moita de mato. O chão, de amarelecido torna-se vermelho de barro, quiabento de lama, um atoleiro largado ao léu, aguardando sol prá secar. Puro milagre da vida que de verde recobre novamente aquele chão bruto.

É por ali que passam os vaqueiros num pique só atrás de vaca desgarrada, dia após dia. E o batido segue sertão adentro, pisando mato, assustando cobra, dobrando espinho. É caminho de todo dia, aquele. Caminho de macho, de mulato courado tal e qual boi, que não dobra o cangote prá chicote e nem prá espinheira.

No sol quente de tostar mandacaru a tropa de vaqueiros se embrenha na sertania  atrás do gado fujão e só volta com o bicho submisso a laço, suor escorrendo, ventas bufando, o lanho esfiapado de uso.

Homem e cavalo, cavalo e homem misturados na lida, um na carreira da obediência, outro na de mando. Ambos entendidos entre si para enfrentar a lida e fugir das armadilhas espinhentas. Tudo isto sem cair de derrapagem e nem trombar com tamanduá.

Peão que presta não monta o que não pode desmontar e nem futuca onça com o cabo do chicote. Também respeita o sertão e não derruba fruta que não vai comer nem suja a água em que vai se banhar.    

A lida segue, o dia se dobra em direção à tarde, o sol se cansa de tanto esforço e, desacorçoado, abre senda para a noite. O céu desamareleia e o horizonte começa a azulear-se, dançando alegre entre os raios de vermelhidão vibrante, ao sabor das nuvens que se perdem em tanto encanto. Não é hora de montaria e se o serviço atrasou, é tempo de tropel largo, do último esforço no retorno prá casa, missão do dia cumprida.   

A noite avança solene, com seu escuro ponteado pelo claro das estrelas que brilham soberbas, mas inconstantes. É o breu, hora da morcegada atrás de fruta e de guará buscando preá. É também hora de onça, que campeia sozinha atrás de presa grande e de carne farta.

Pior que tudo, é hora da mula sem cabeça que pisoteia sem dó quem lhe atazana a frente e solta línguas de fogo pros lados e pra diante. É de botar medo no vaqueiro mais macho e no boi mais bravo. Contra a mula só reza de padre antigo, cosida por sobre sua cabeça, única forma de retirar dali o cabresto revelador da mulher arrependida. Aí a besta se redime e cai ao chão na figura da pecadora a quem se administram Ave Marias e Pais Nossos em conta de trinta e três, fora um desfiar de terços sem fim.

Noite no praceado varrido a gosto e a capricho. Chão batido que, defronte à cozinha, atende à serventia da seca de roupa, do bater de feijão e da debulha do milho. Serve também prá acocorar-se a família, desenrolando paieiro, cofiando fumo e ouvindo feliz a moda de viola. Tocados em compartilhamento de mãos e coração, os acordes revoam pela noite adornando o vazio e invadindo a escuridão. Pai, mãe e filharada sorriem em puro deleite, parecendo saber que felicidade é algo que brota e cresce no que há de mais comum disposto por Deus neste mundão.

Breve tempo de folgança. A cortina dos olhos cobra a dureza do dia findo e o colchão de palha chama com autoridade para o romper do sono rumo a uma nova manhã de sol e um novo dia de lida. 

É como diz Zé Carneiro, filósofo de última hora, boiadeiro de palavras, encarecendo a luta constante no desfiar dos dias, como bem pregado por Nosso Senhor: 

Trabaia, minha véia, trabaia! Se descansa, morre!


sábado, 21 de abril de 2012

A visita



                                                                                                            Sílvio Lanna

A solidão apertava mais uma vez.

Sentia-se exilado do mundo, perdido em vãos pensamentos que mais uma vez repetiam-se insistentes.  Noite de sábado, até um pouco de vento tentava trazer-lhe algum conforto, mas a angústia crescia tomando-lhe pulsos e tornozelos imobilizando-o, derramado que estava na velha poltrona.


Tentava trazer à mente as doces recordações do tempo em que ainda era útil e respeitado. Mas nada que refluía de sua mente cansada possuía algum sabor adocicado. Eram só lembranças amargas ou tornadas assim pelo despejar seguido dos anos que se acumulavam em sua alma.


Da casa vizinha um também solitário piano desafiava acordes que resvalavam nos batentes, paredes e gelosias, derrubando-se intrometidos em seus ouvidos. 


Era a mulher de seu Orquídio, homem mau que só lhe dedicava olhares de desprezo e com quem jamais trocou qualquer dedo de prosa. 


Talvez ela também fosse solitária como ele ou como o piano que esticava seus agudos na tentativa de permanecer mais alguns segundos pairando no ar. No fundo era como ele também fazia: esticava sua vida na esperança de que seu estado de só pudesse um dia cobrir-se de algum consolo.


Não foi sempre assim, antes era bom. Já possuiu motivos para sorrir e as lágrimas que alguma vez lhe brotaram eram de puro amor, um amor tão intenso que jamais deveria ter nascido.


Mas o tempo passa e com ele vão se desgarrando as alegrias, as companhias, os sorrisos e o coração vai ficando mais pesado. Passa a bater descompassado, triste também, com a responsabilidade de carregar tantos fardos que às vezes imagina não suportar. 


Esquece o ritmo e por vezes ameaça parar. É assim que responde, também solitário, à falta do calor de um abraço ou do conforto de um afago que antes o faziam acelerar-se de emoção até quase brotar pela boca.


O velho piano insistia em revoar seus acordes belos e tristes, espetando como agulhas e fazendo borbulhar ainda mais as recordações que libertavam tantas lágrimas. 


De onde estava olhou mais uma vez pela janela entreaberta que descortinava um pedaço do mal cuidado jardim. Mais à frente um portãozinho verde mantinha-se fechado. O relógio implacável já caminhava para as dez da noite. 


Não, novamente ele não virá...  


quinta-feira, 19 de abril de 2012

Quando o burro é muito burro não consegue nem se disfarçar de zebra...


Vejamos o teor do inoportuno documento publicado hoje pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF (http://www.sjpdf.org.br/Noticia,Abrir,8050,7804.aspx):

Nota de Protesto
Abusos da equipe do CQC exigem uma atitude das assessorias de imprensa e cerimonial para garantir condições de trabalho aos jornalistas
Este Sindicato recebeu nas últimas horas dezenas de reclamações relativas a forma como integrantes do programa humorístico CQC tem (sic) se comportado em entrevistas coletivas e solenidades governamentais. O episódio mais recente e gravoso ocorreu na visita da Secretária de Estado dos EUA. Tal comportamento tem gerado constrangimentos e atritos que frequentemente prejudicam o bom desempenho dos profissionais de imprensa, muitas vezes precipitando o encerramento das coletivas e solenidades, e resultando em maior a restrição no acesso dos jornalistas às autoridades.

Sem desmerecer o trabalho humorístico, acreditamos que nossa sociedade carece, em maior grau, de informações de qualidade, e neste sentido, defenderemos sempre a preponderância da atividade jornalística sobre a humorística.

Aos responsáveis pelas Assessorias de Imprensa e Cerimonial de Governo - especialmente da Presidência da República e do Ministério das Relações Exteriores - solicitamos a adoção das medidas necessárias para garantir tal preponderância. Não nos consta que em qualquer outro lugar do mundo profissionais de imprensa e humoristas recebam o mesmo tipo de credenciamento.

Aos colegas jornalistas colocamos nosso departamento jurídico a disposição para eventuais ações judiciais por danos morais ou físicos.

E por fim suscitamos aos profissionais do CQC uma reflexão sobre seu modus operandi, levando em consideração princípios como respeito e profissionalismo.

Diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF

O motivo da irada nota foi a intervenção do jornalista do programa CQC na entrevista concedida pela Secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton. Segundo o sindicato (também de jornalistas), a antecipada saída da Excelentíssima Senhora teria sido causada pela intervenção do humorista que desejava entregar-lhe uma máscara de carnaval. A alegoria, segundo ele seria compatível com as últimas aparições públicas da Secretária em casa noturna da Colômbia bebendo e dançando alegremente (nada que pudesse arranhar seu prestígio).

Mérito à parte, o irado redator da nota preconiza verdadeira reserva de mercado para os "jornalistas não humoristas", ou seria "humoristas não jornalistas" (?), uma vez que, segundo ele, os noticiaristas teriam "preponderância" sobre aqueles.

Deseja ainda o irado senhor que as aparições, conduta e "modus operandi" do pessoal do CQC seja revisto por eles próprios e, ainda, pela Presidência da República e pelo Ministério das Relações Exteriores (!!!). Esses anseios há muito haviam sido jogados no arquivo morto da cultura em nosso país. Denominam-se, genericamente, de CENSURA PRÉVIA.

É isto, na realidade, que deseja o representante do sindicado, pasmem, de jornalistas(!!!): o retorno da CENSURA de diversões públicas.

O irritado senhor não se identifica nem mesmo pela citação do cargo que ocupa, o que transfere integral responsabilidade à instituição. Esquece-se que a sra. Clinton, bem como qualquer político, cantor, humorista e demais homens públicos recebem os ônus da notoriedade, mas também os bônus da indiscrição pública. Não podem eles exigir que não sejam alvos de piadas, contraditas, fotografias, filmagens e críticas dentro dos limites legais.

Desta forma, caso algum notório cidadão tenha se julgado ofendido por esse ou aquele comentário de jornalistas, humoristas ou outros cidadãos deste país, tem a seu dispor a legislação (criminal e cível) que certamente abrigará suas pretensões e punirá o ofensor, se cabível.

Não tenho qualquer interesse particular na defesa do CQC, mas considero intolerável qualquer afronta à liberdade pessoal e de imprensa.

A censura é antes de tudo uma expressão de burrice. Mesmo quando tenta se disfarçar de zebra.


Uma imagem vale mais que...





Dilemas helênicos (nada filosóficos) que abalaram a Europa







El hipócrita pequeño rey


O rei Juan Carlos I de Espanha é mais uma personalidade a justificar a máxima "faça o que digo mas não o que faço". O hipócrita reizinho que ao lado de outros monarcas é peça decorativa, vivendo inutilmente à custa de seu povo, dedica-se a frivolidades por falta de mais o que fazer.

O nobre é italiano (e não espanhol como se poderia imaginar) e preenche seus momentos de ócio caçando animais mundo afora. Já foi notícia por abater ursos na Romênia e diz-se que foi flagrado bêbado na Rússia portando armas de caça.

Agora Sua Majestade fraturou os quartos reais em uma caçada de elefantes na África. Se não fosse o incidente real talvez o mundo não ficasse sabendo de mais essa peripécia do enfastiado reizinho .

A hipocrisia do soberano espanhol não tem limites. Em 1994 recebeu o Prémio Felix Houphouet-Boigny para a Procura da Paz, concedido pela Unesco a personalidades e entidades que tenham se dedicado no combate à violência, concedido também a Nélson Mandela, Yasser Arafat e até mesmo ao presidente Lula. Além disto é ele presidente de honra da ONG WWF, uma das maiores e mais importantes entidades em defesa dos animais e do meio ambiente no mundo.

Nada disto, entretanto, constrangeu-o a gastar mais de vinte mil dólares do tesouro de seu país no abate de elefantes no continente africano. Descoberto (por acaso), pediu desculpas públicas e considera o caso encerrado. Simples assim.

A WWF (http://www.wwf.es/) já requereu audiência com a família real para tratar do assunto e pedir ao cínico monarca que peça sua exclusão dos quadros da entidade. (http://www.wwf.es/?21020/WWF-Espaa-pide-una-reunin-con-la-Casa-Real-por-el-caso-de-la-caza-de-elefantes-del-Rey-Juan-Carlos )

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Revelações secretas do VI Cumbre


O VI Cumbre, ou VI Cúpula das Américas terminou neste domingo em Cartagena, na Colômbia, sem apresentar qualquer avanço, resultado prático ou até mesmo declaração conjunta. A reunião foi coerente com outros Encontros, Cúpulas e Simpósios realizados entre os dirigentes de nuestra latinoamérica, que nunca dão certo mesmo...

Apenas uma reunião de cúpula parece ter resultado em algo concreto, sem o inútil blá-blá-blá dos presidentes. Foi aquela realizada entre os agentes secretos da segurança presidencial americana e as agentes colombianas recrutadas na última hora, em razão do fracasso do conclave principal.

Nossos repórteres secretos também cobriram os eventos e divulgamos com exclusividade as fotos obtidas, acrescendo nossos comentários:












































sábado, 14 de abril de 2012

O fantástico realismo fantástico de Rubião

A armadilha

Murilo Rubião

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.

Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.

Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.

Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.

Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:

— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.

O outro teve que insistir:

— Afinal, você veio.

Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:

— Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.

— Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.

— Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?

— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.

Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.

Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:

— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.

— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.

— Nada?

Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.

— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!

Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:

— Calculava, porém desejava ter certeza.

Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam.
O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.

Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:

— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.

— Não, além

de desarmado, você não veio aqui para matar-me.

— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!

— Não posso.

— Não pode ou não quer?

— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.

Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.

Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.

Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:


— Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.

A fúria de Alexandre chegara ao auge:

— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!

— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.

— Gritarei, berrarei!

— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.

E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:

— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

Genocídio portenho


Ontem as agências de notícias publicaram confissão do ex-presidente Jorge Videla (ditador na Argentina de 1976 a 1981) de que realmente foi o responsável por aproximadamente oito mil assassinatos e desaparecimentos de opositores políticos naquele país. Trata-se de um verdadeiro genocídio que, somado a outros crimes similares cometidos pelos demais ditadores portenhos revela o horror das ditaduras, semelhantes em qualquer lugar do mundo.

A notícia, ao contrário do que possamos pensar, não se circunscreve às fronteiras argentinas. A Operação Condor - hoje conhecida em detalhes -, reuniu as ditaduras de Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai em uma verdadeira associação do mal, onde táticas de guerra e de tortura eram trocadas, assassinados cometidos além das próprias fronteiras, desafetos eram perseguidos onde estivessem, enfim, um verdadeiro sindicato do crime. Assim, nossos ditadores domésticos no mínimo foram condescendentes com o terror praticado pelo Estado argentino naqueles momentos.

Como em vários outros casos similares, os carrascos institucionalizados desculpam a si mesmos pelas barbaridades praticadas. Cinicamente Videla informou que "Não havia outra solução. Na cúpula militar estávamos de acordo que era o preço a se pagar para ganhar a guerra contra a subversão e precisávamos de um método que não fosse evidente, para que a sociedade não o percebesse”.

Esta é a tônica de qualquer regime de exceção: o ditador de plantão julga mesmo que detém o direito e o mandato para agir conforme seus desejos. As aspirações da sociedade são simples detalhes a serem manipulados conforme julguem necessário. Assim, todo ditador julga-se Deus (ou no máximo enviado dele), como ocorreu com Hitler, alter ego de todos eles.

Continuou o monstro portenho: "Tenho peso na alma, mas não estou arrependido de nada. Gostaria de fazer esta contribuição para que a sociedade saiba o que aconteceu e para aliviar a situação de muitos oficiais que atenderam às minhas ordens".

Importante tomarmos conhecimento de tais fatos e da história de nossos vizinhos. O Brasil não é uma ilha, assim como a América do Sul e nem qualquer outra região ou Nação. Buscar a verdade em qualquer momento histórico é um direito de todos nós e um dever das instituições hoje redemocratizadas.

Esta a importância da nossa Comissão da Verdade, que deverá cumprir seu papel de colocar-nos nos trilhos da fidelidade histórica, ainda que seu sabor oscile entre o azedo e o amargo.

Sobre o tema falaremos posteriormente.



quarta-feira, 11 de abril de 2012

11 de abril: o início da longa noite


Trinta e um de março foi só o golpe, só o anunciar da violência. Foi em 11 de abril de 1964 que o congresso brasileiro (aqui com minúsculas mesmo) "elegeu" (!) o primeiro general presidente da linhagem que desfechou a noite institucional em nosso país: general Castelo Branco.

Seu "mandato" (!), segue até 15 de março de 1967 e impôs ao país, dentre outros desmandos: fechamento de diversas associações civis, intervenção maciça em sindicatos, proibição de greves, cassação de legítimos mandatos políticos (dentre os quais o do ex-Presidente JK) e criação do famigerado SNI que tantos males impôs ao país. Extinguiu a UNE, entidades estudantis estaduais e determinou a invasão e fechamento da Universidade de Brasília. Alterou ainda a competência legal para julgamento dos chamados "crimes políticos" (exceto os deles próprios), transferindo-a para a "justiça militar".

Castelo, o primeiro general presidente governou amparado por amplas medidas de exceção e com domínio franco dos demais poderes da República. Afinal, se algo viesse a incomodar, bastava editar uma emenda constitucional ou um ato institucional...

Foi assim com o AI-2 despejado sobre o país em 27.10.65, exterminando partidos políticos, permitindo imposição de estado de sítio, instituindo a famosa "eleição" (!) indireta para presidente da República. O congresso, pobre congresso, viu-se convertido em mero colégio eleitoral, completamente despojado de seus poderes constitucionais.

E os partidos políticos? Extintos os demais, foram criados os dois que permaneceriam por longo tempo no cenário nacional:

- A ARENA, mais tarde convertida em PDS, depois em PFL e atualmente em DEM. Representou (e até hoje representa) a direita e a extrema direita brasileira, sendo originariamente o palco onde atuaram os civis que elaboraram e operacionalizaram o golpe de 64, além dos simpatizantes. Durante os governos militares foi a face institucional do regime de exceção que se implantara, tentando encenar uma situação de legalidade.

- O outro, vivo porém amordaçado, foi o MDB, pai do PMDB de hoje. Dele surgiram Ulisses Guimarães, Tancredo Neves e outros protagonistas da democratização brasileira que viria a ocorrer somente vinte anos após o início da sombra que se abateu sobre nós.

Utilizando-se de todos os artifícios espúrios e da violência política que caracterizou os governos militares, Castelo impôs em fevereiro de 1966 o AI-3, que transformou as eleições estaduais também em indiretas, nos mesmos moldes federais. Já em novembro, julgando insuficientes as medidas de força até então impostas, fechou o congresso e despejou longa onda de cassações de parlamentares (aqueles que ainda o incomodavam no exercício do poder absoluto).

Sentindo que ainda não estava consolidado o absolutismo político implantado e a transformação definitiva do presidente em monarca, Castelo jogou sobre a Nação o AI-4, determinando que seria feita nova constituição. Mais uma obra da violência militar, a constituição de março de 67 consolidou a ditadura e serviu de mais um brinquedinho militar no exercício de sua putrefata atuação no comando do Brasil.

Pois é... tem coisas que a gente tem que manter vivas na memória para que jamais tornem a ocorrer ou, ainda, prá evitarmos que irresponsáveis e/ou de má-fé possam atribuí-las a uma tal de "ditabranda".