domingo, 22 de abril de 2012

Pelo sertão de Nosso Senhor



                                                                           Sílvio Lanna

Estrada de pó, muito pó. Tempo de vento, muito vento, agosteado pela força da natureza, janeirado pelo calor de matar.

O tufo de poeira cobria todos os matos, de lavoura a capim e tudo quanto é pau retorcido que por aquelas bandas anunciava o cerradão brabo.

Fim de ano vem a chuva trazendo cheiro de esperança e explodindo a brotação por tudo o que é moita de mato. O chão, de amarelecido torna-se vermelho de barro, quiabento de lama, um atoleiro largado ao léu, aguardando sol prá secar. Puro milagre da vida que de verde recobre novamente aquele chão bruto.

É por ali que passam os vaqueiros num pique só atrás de vaca desgarrada, dia após dia. E o batido segue sertão adentro, pisando mato, assustando cobra, dobrando espinho. É caminho de todo dia, aquele. Caminho de macho, de mulato courado tal e qual boi, que não dobra o cangote prá chicote e nem prá espinheira.

No sol quente de tostar mandacaru a tropa de vaqueiros se embrenha na sertania  atrás do gado fujão e só volta com o bicho submisso a laço, suor escorrendo, ventas bufando, o lanho esfiapado de uso.

Homem e cavalo, cavalo e homem misturados na lida, um na carreira da obediência, outro na de mando. Ambos entendidos entre si para enfrentar a lida e fugir das armadilhas espinhentas. Tudo isto sem cair de derrapagem e nem trombar com tamanduá.

Peão que presta não monta o que não pode desmontar e nem futuca onça com o cabo do chicote. Também respeita o sertão e não derruba fruta que não vai comer nem suja a água em que vai se banhar.    

A lida segue, o dia se dobra em direção à tarde, o sol se cansa de tanto esforço e, desacorçoado, abre senda para a noite. O céu desamareleia e o horizonte começa a azulear-se, dançando alegre entre os raios de vermelhidão vibrante, ao sabor das nuvens que se perdem em tanto encanto. Não é hora de montaria e se o serviço atrasou, é tempo de tropel largo, do último esforço no retorno prá casa, missão do dia cumprida.   

A noite avança solene, com seu escuro ponteado pelo claro das estrelas que brilham soberbas, mas inconstantes. É o breu, hora da morcegada atrás de fruta e de guará buscando preá. É também hora de onça, que campeia sozinha atrás de presa grande e de carne farta.

Pior que tudo, é hora da mula sem cabeça que pisoteia sem dó quem lhe atazana a frente e solta línguas de fogo pros lados e pra diante. É de botar medo no vaqueiro mais macho e no boi mais bravo. Contra a mula só reza de padre antigo, cosida por sobre sua cabeça, única forma de retirar dali o cabresto revelador da mulher arrependida. Aí a besta se redime e cai ao chão na figura da pecadora a quem se administram Ave Marias e Pais Nossos em conta de trinta e três, fora um desfiar de terços sem fim.

Noite no praceado varrido a gosto e a capricho. Chão batido que, defronte à cozinha, atende à serventia da seca de roupa, do bater de feijão e da debulha do milho. Serve também prá acocorar-se a família, desenrolando paieiro, cofiando fumo e ouvindo feliz a moda de viola. Tocados em compartilhamento de mãos e coração, os acordes revoam pela noite adornando o vazio e invadindo a escuridão. Pai, mãe e filharada sorriem em puro deleite, parecendo saber que felicidade é algo que brota e cresce no que há de mais comum disposto por Deus neste mundão.

Breve tempo de folgança. A cortina dos olhos cobra a dureza do dia findo e o colchão de palha chama com autoridade para o romper do sono rumo a uma nova manhã de sol e um novo dia de lida. 

É como diz Zé Carneiro, filósofo de última hora, boiadeiro de palavras, encarecendo a luta constante no desfiar dos dias, como bem pregado por Nosso Senhor: 

Trabaia, minha véia, trabaia! Se descansa, morre!


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