Sílvio Lanna
Estrada de pó, muito pó. Tempo de vento, muito vento, agosteado
pela força da natureza, janeirado pelo calor de matar.
O tufo de poeira cobria todos os matos, de lavoura a capim e tudo
quanto é pau retorcido que por aquelas bandas anunciava o cerradão brabo.
Fim de ano vem a chuva trazendo cheiro de esperança e explodindo a
brotação por tudo o que é moita de mato. O chão, de amarelecido torna-se
vermelho de barro, quiabento de lama, um atoleiro largado ao léu, aguardando
sol prá secar. Puro milagre da vida que de verde recobre novamente aquele chão
bruto.
É por ali que passam os vaqueiros num pique só atrás de vaca
desgarrada, dia após dia. E o batido segue sertão adentro, pisando mato,
assustando cobra, dobrando espinho. É caminho de todo dia, aquele. Caminho de
macho, de mulato courado tal e qual boi, que não dobra o cangote prá chicote e
nem prá espinheira.
No sol quente de tostar mandacaru a tropa de vaqueiros se embrenha
na sertania atrás do gado fujão e só
volta com o bicho submisso a laço, suor escorrendo, ventas bufando, o lanho
esfiapado de uso.
Homem e cavalo, cavalo e homem misturados na lida, um na carreira
da obediência, outro na de mando. Ambos entendidos entre si para enfrentar a
lida e fugir das armadilhas espinhentas. Tudo isto sem cair de derrapagem e nem
trombar com tamanduá.
Peão que presta não monta o que não pode desmontar e nem futuca
onça com o cabo do chicote. Também respeita o sertão e não derruba fruta que
não vai comer nem suja a água em que vai se banhar.
A lida segue, o dia se dobra em direção à tarde, o sol se cansa de
tanto esforço e, desacorçoado, abre senda para a noite. O céu desamareleia e o
horizonte começa a azulear-se, dançando alegre entre os raios de vermelhidão
vibrante, ao sabor das nuvens que se perdem em tanto encanto. Não é hora de
montaria e se o serviço atrasou, é tempo de tropel largo, do último esforço no
retorno prá casa, missão do dia cumprida.
A noite avança solene, com seu escuro ponteado pelo claro das
estrelas que brilham soberbas, mas inconstantes. É o breu, hora da morcegada
atrás de fruta e de guará buscando preá. É também hora de onça, que campeia
sozinha atrás de presa grande e de carne farta.
Pior que tudo, é hora da mula sem cabeça que pisoteia sem dó quem
lhe atazana a frente e solta línguas de fogo pros lados e pra diante. É de
botar medo no vaqueiro mais macho e no boi mais bravo. Contra a mula só reza de
padre antigo, cosida por sobre sua cabeça, única forma de retirar dali o
cabresto revelador da mulher arrependida. Aí a besta se redime e cai ao chão na
figura da pecadora a quem se administram Ave Marias e Pais Nossos em conta de
trinta e três, fora um desfiar de terços sem fim.
Noite no praceado varrido a gosto e a capricho. Chão batido que,
defronte à cozinha, atende à serventia da seca de roupa, do bater de feijão e
da debulha do milho. Serve também prá acocorar-se a família, desenrolando
paieiro, cofiando fumo e ouvindo feliz a moda de viola. Tocados em
compartilhamento de mãos e coração, os acordes revoam pela noite adornando o
vazio e invadindo a escuridão. Pai, mãe e filharada sorriem em puro deleite,
parecendo saber que felicidade é algo que brota e cresce no que há de mais
comum disposto por Deus neste mundão.
Breve tempo de folgança. A cortina dos olhos cobra a dureza do dia
findo e o colchão de palha chama com autoridade para o romper do sono rumo a
uma nova manhã de sol e um novo dia de lida.
É como diz Zé Carneiro, filósofo de última hora, boiadeiro de
palavras, encarecendo a luta constante no desfiar dos dias, como bem pregado
por Nosso Senhor:
Trabaia, minha véia, trabaia! Se descansa, morre!
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