Sílvio Lanna
Aferrolhou
a porta, que rangiu sob o peso de tantos anos de serventia.
Era
o casarão dos Borges, que testemunhara a riqueza das pepitas rolando ao leito
do Ribeirão da Agonia até a aspereza dos tempos de seca que agora vivia. Seca
de água, seca de consolo.
Ferrolho
na porta, recolheu-se a seus pensamentos e, como sempre fazia todos os dias,
ele rememorava particularmente Alzira. E perdeu-se novamente no mar de
nostalgia e de saudades que brotavam acalentadas por ausência tão intensa.
Dormiu.
Manhã
renascida, entregou-se à lida. Mão na enxada, abateu o mato que teimava por
entre as alfaces e as couves. Pé na estrada foi estar no curral onde Zé
Carneiro já se desincumbia da tiração do leite e do soltar a vacada pasto
acima.
O
andar já não mais ajudava, trôpego que estava.
As vistas já não percebiam com a clareza de antes que uma nova safra de
margaridas ornava o terreiro, ou que os ipês amarelos mesclavam-se ao verde do
pasto, qual bandeira pátria por Deus hasteada.
Nada
podia, a não ser desfazer-se da propriedade que durante os últimos setenta anos
fôra sua morada e seu alento. Mas, e fazer o quê depois?
Aflorando
em meio a tanta tristeza tinha também as recordações dos anos felizes ao lado
de Alzira – quarenta e tantos – que tão bons foram, tanto de doce lembrança
largaram. Trouxeram também Modesto Júnior, Ricardo e Maria do Céu. Os dois, já
de muito prá São Paulo, raramente tornavam à terra que os parira – apenas três
vezes nos últimos dez anos. Também não ligavam – telefone não havia. Nem
escreviam – dava gastura.
Já
Maria do Céu, não. De mês em mês dava as caras, permitida que estava por
Jaquetão, marido que o destino lhe reservara (ou lhe condenara). Tornava a ver
o pai quase sempre na tardinha do dia, para retornar pro almoço de amanhã. Na
roda das horas que corriam ainda sob a luz evitava contar as agruras sofridas
de um marido bruto, um animal quando movido pela cachaça.
Falava
do café, cuja panha já se avizinhava e que deveria somar mais de cem sacas, já
limpo. Falava também dos queijos que lhe tomavam parte do dia e que embalavam
pensamentos nascidos lá na sua infância e que hoje, já rotos pela desesperança,
tinham tomado cor de foto velha, amarelecidos e embolorados.
Não
falava dos desejos de adolescente, que tanto lhe incendiavam a alma, porém impedidos
que foram pelo pai. Desejara também ir para São Paulo com os irmãos, pra ver
cinema, andar pelas ruas lotadas de gente, sentir cheiro de fumaça. Tudo o que
não tinha naquele canto esquecido do mundo, emoldurado por um riacho que também
era Agonia.
Avançando
a noite entremeio às mesas, portas e janelas, era hora de dormir, a partir da
bênção paterna, sempre fria e automática.
Pronto,
estava ele novamente só, cada vez mais só, já começando a fazer parte da
paisagem e deixando ser o cabra vigoroso que havia erguido tudo aquilo a poder
do muque e do trabalho de sol a sol.
A
partida de Alzira apressara a decadência que a idade se incumbiria de
providenciar. Não era qualquer saudade, era uma saudade funda que alcançava até
os pontos mais obscuros de sua alma. Era dolorida também, a ponto de deixar
vontade de esquecer o mundo, os filhos ingratos, as criações e até mesmo os
ipês que se coloriam mais e mais só para tentar trazer um pouco de vida à sua
morte latente.
A aragem fria anunciava mais um inverno, a neblina já
subia do brejo que ladeava o Agonia e a cerração já comparecia forte na noite
gelada. O rangido da cama ajudava a esfriar mais, não era época para atravessar
as noites acompanhado da insônia. Nada mais, era só esperar de novo a manhã com
seus raios de calorzinho bom.
Desaferrolhou
a porta para de novo tomar o caminho do curral, só que desta vez com o chão
molhado de sereno e com as Angolas cantando mais espaçado, frio que estava.
Tomou
seu rumo mais uma vez. Passou pelo curral e nem atendeu ao bom dia de Zé
Carneiro. Foi visto atravessando a porteira da Fazenda das Cruzes e subindo o
pasto do seu Levindo. Dobrou naquelas
alturas, sob as moitas de bambu que rangiam ao vento constante e nunca mais foi
visto.