quarta-feira, 6 de junho de 2012

Saudade


                                                                                                          Sílvio Lanna

Aferrolhou a porta, que rangiu sob o peso de tantos anos de serventia.

Era o casarão dos Borges, que testemunhara a riqueza das pepitas rolando ao leito do Ribeirão da Agonia até a aspereza dos tempos de seca que agora vivia. Seca de água, seca de consolo.

Ferrolho na porta, recolheu-se a seus pensamentos e, como sempre fazia todos os dias, ele rememorava particularmente Alzira. E perdeu-se novamente no mar de nostalgia e de saudades que brotavam acalentadas por ausência tão intensa.

Dormiu.

Manhã renascida, entregou-se à lida. Mão na enxada, abateu o mato que teimava por entre as alfaces e as couves. Pé na estrada foi estar no curral onde Zé Carneiro já se desincumbia da tiração do leite e do soltar a vacada pasto acima.

O andar já não mais ajudava, trôpego que estava.  As vistas já não percebiam com a clareza de antes que uma nova safra de margaridas ornava o terreiro, ou que os ipês amarelos mesclavam-se ao verde do pasto, qual bandeira pátria por Deus hasteada.

Nada podia, a não ser desfazer-se da propriedade que durante os últimos setenta anos fôra sua morada e seu alento. Mas, e fazer o quê depois?

Aflorando em meio a tanta tristeza tinha também as recordações dos anos felizes ao lado de Alzira – quarenta e tantos – que tão bons foram, tanto de doce lembrança largaram. Trouxeram também Modesto Júnior, Ricardo e Maria do Céu. Os dois, já de muito prá São Paulo, raramente tornavam à terra que os parira – apenas três vezes nos últimos dez anos. Também não ligavam – telefone não havia. Nem escreviam – dava gastura.

Já Maria do Céu, não. De mês em mês dava as caras, permitida que estava por Jaquetão, marido que o destino lhe reservara (ou lhe condenara). Tornava a ver o pai quase sempre na tardinha do dia, para retornar pro almoço de amanhã. Na roda das horas que corriam ainda sob a luz evitava contar as agruras sofridas de um marido bruto, um animal quando movido pela cachaça.

Falava do café, cuja panha já se avizinhava e que deveria somar mais de cem sacas, já limpo. Falava também dos queijos que lhe tomavam parte do dia e que embalavam pensamentos nascidos lá na sua infância e que hoje, já rotos pela desesperança, tinham tomado cor de foto velha, amarelecidos e embolorados.

Não falava dos desejos de adolescente, que tanto lhe incendiavam a alma, porém impedidos que foram pelo pai. Desejara também ir para São Paulo com os irmãos, pra ver cinema, andar pelas ruas lotadas de gente, sentir cheiro de fumaça. Tudo o que não tinha naquele canto esquecido do mundo, emoldurado por um riacho que também era Agonia.

Avançando a noite entremeio às mesas, portas e janelas, era hora de dormir, a partir da bênção paterna, sempre fria e automática.

Pronto, estava ele novamente só, cada vez mais só, já começando a fazer parte da paisagem e deixando ser o cabra vigoroso que havia erguido tudo aquilo a poder do muque e do trabalho de sol a sol.

A partida de Alzira apressara a decadência que a idade se incumbiria de providenciar. Não era qualquer saudade, era uma saudade funda que alcançava até os pontos mais obscuros de sua alma. Era dolorida também, a ponto de deixar vontade de esquecer o mundo, os filhos ingratos, as criações e até mesmo os ipês que se coloriam mais e mais só para tentar trazer um pouco de vida à sua morte latente.

A aragem fria anunciava mais um inverno, a neblina já subia do brejo que ladeava o Agonia e a cerração já comparecia forte na noite gelada. O rangido da cama ajudava a esfriar mais, não era época para atravessar as noites acompanhado da insônia. Nada mais, era só esperar de novo a manhã com seus raios de calorzinho bom.

Desaferrolhou a porta para de novo tomar o caminho do curral, só que desta vez com o chão molhado de sereno e com as Angolas cantando mais espaçado, frio que estava.

Tomou seu rumo mais uma vez. Passou pelo curral e nem atendeu ao bom dia de Zé Carneiro. Foi visto atravessando a porteira da Fazenda das Cruzes e subindo o pasto do seu Levindo.  Dobrou naquelas alturas, sob as moitas de bambu que rangiam ao vento constante e nunca mais foi visto.

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