segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Cachaça de Salinas


Sílvio Lanna


Ei, ei, ô do bigode! Ôooo! O senhor mesmo!
Está aqui sua encomenda, que sô Gervázio da mercearia mandou trazer.

O que é isto?

Pinga!
Pinga da boa, lá da fazenda de  Salinas.

Mas...

É boa mesmo!
Pinga de respeito, coisa de apreciar fechando os olhos.
Três litros da mais pura, coisa que encara até whisky escocês.

É melhor que whisky?

Muito melhor!!!
Dias atrás veio aqui um gringo, sabe, desses branquelas de olhos azuis, aquela bermuda que mais parece uma calça curta e aquele tênis tamanho 50?
Pois é, tomou três doses e saiu dizendo que voltaria com os amigos no fim do dia para acabarem com o estoque.

Mas essa pinga nem nome tem...
Tá até embrulhada em jornal...

Mas aí é que tá... É reserva especial da fazenda, só para amigos do sô Gervázio e não tem rótulo senão ficaria mais cara...

E quanto custa?

É cinquenta o litro, mas comprando três sai a cento e vinte.
Vamos, pega e me dá o dinheiro que tenho outras entregas.
Mas eu...
Se mais e sem menos, tire os escorpiões do bolso e vá curtir essa maravilha!
Ainda mais no seu caso, que o bigode vai beber também e depois ainda um pouquinho prá mais tarde...

Mas é caro!

Que caro, rapaz. Com cento e vinte hoje você nem compra uma calça das boas, e se for comprar um whisky só vai conseguir uma garrafa! Eu estou lhe vendendo três litros!
Toma lá a encomenda, me dá o dinheiro, que senão sô Gervázio me come o fígado pela demora.

É de Salinas mesmo?

Olha a rolha, espia bem...
Tá vendo como os buraquinhos de cima formam um “S” direitinho?
É “S” de Salinas, moço, todo mundo sabe disto.

Eu não sabia...

Pois é, aprendeu mais uma e quando tomar a primeira dose vai aprender o que é uma pinga boa, coisa fina...

Onde é a mercearia do sô Gervázio?

É a Tem para Todos, que fica lá na rua Astorga, prá cima das Pernambucanas do Riacho das Pedras. Localizou?

É, sei mais ou menos. É perto do ponto do 212?

Não, o ponto do 212 fica prá baixo, perto do Cine Odeon, da Praça Primeiro de Maio.
Eu tô falando é lá prá cima, cruzando a linha...

Sei mais ou menos.

Toma que eu já estou sem tempo.

Tá bom, mas eu nem bebo...

Tá na hora de começar. Homem que é homem tem que tomar pelos menos umas duas por dia.
É uma antes do almoço e outra antes de dormir.
Santo remédio, ainda mais de uma coisa preciosa dessas...

Tá bom! Aqui estão os cento e vinte.

Obrigado, bigode, você não vai se arrepender.

O gozado é que eu nem uso bigode...
    
    


sábado, 6 de abril de 2013

Grandes são os desertos

Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa)


Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 

Grandes são os desertos, minha alma! 
Grandes são os desertos. 

Não tirei bilhete para a vida, 
Errei a porta do sentimento, 
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
Senão saber isto: 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
Para adiar todas as viagens. 
Para adiar o universo inteiro. 

Volta amanhã, realidade! 
Basta por hoje, gentes! 
Adia-te, presente absoluto! 
Mais vale não ser que ser assim. 

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 

Mas tenho que arrumar mala, 
Tenho por força que arrumar a mala, 
A mala. 

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 

Tenho que arrumar a mala de ser. 
Tenho que existir a arrumar malas. 
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
Sei só que tenho que arrumar a mala, 
E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 

Ergo-me de repente todos os Césares. 
Vou definitivamente arrumar a mala. 
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la; 
Hei de vê-la levar de aqui, 
Hei de existir independentemente dela. 

Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
Salvo erro, naturalmente. 
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 

Mais vale arrumar a mala. 
Fim.

Prece


Fernando Pessoa


Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo. 

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome. 

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai. 

[...] 

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar. 

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te. 

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

Poema em Linha Reta

Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa)

http://www.youtube.com/watch?v=uElwCENBDJQ


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
(…)
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O aniversário

Sílvio Lanna









Tenho mesmo certeza de que hoje é meu aniversário.
Ontem não era. Há muitos anos era.
Eu penso que aquele bolo colorido de palhaços e trapezistas com uma vela colorida por cima 
também era de aniversário. Mas já faz muito tempo.
Eu até ganhei um monte de presentes bonitos que ficaram amontoados aos trapos e pedaços 
no meu guarda coisas.
É lá também que estão tantas lembranças escuras, marrons, vibrantes e as brilhantes.
É lá também que eu retorno vez por outra e encontro algumas partes de mim 
que não reconheço hoje.
Mas é difícil chegar. Tem aquela escadaria de pedra grossa.
Costuma estar molhada de uma chuva que vem de algum lugar lá perto.
Escorrega. Cansa. Assusta.
Mas também é lá que estão todas aquelas pessoas que me cumprimentam, 
que me fixam nos olhos e perguntam pela cor do dia lá fora. E eu nunca sei dizer...
Digo apenas que existe uma diferença entre todo dia e o dia do aniversário.
É que no dia do aniversário a gente ganha um presente que dura um ano.
E depois a gente leva para o depósito e se prepara para enfrentar outro.
É assim que os dias se sucedem.
É assim também que as vidas se sucedem.

Soneto de aniversário

Vinícius de Moraes


Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.