O macarthismo, de triste lembrança,
reacende seus pavios de vez em quando. O mote pode ser político, ideológico,
racial, enfim, qualquer das vertentes que o radicalismo e a intolerância podem utilizar.
Vivemos o mundo dos rótulos e das análises
rasteiras, onde padrões subjetivamente estabelecidos são lançados para
standartizar pessoas e comportamentos. É a apoteose da burrice e da
superficialidade.
O mais recente exemplo consiste na polêmica
em torno do novo disco de Chico Buarque, particularmente com relação à música “Tua
Cantiga”.
Mentes menos acuradas indignaram-se com
o verso:
“Largo
mulher e filhos e de joelhos vou te seguir”
Pronto. Isto é suficiente para taxar o
compositor cuja carreira já conta com meio século, de machista. É óbvio que os
autores de tais críticas desconhecem a carreira do maior letrista da música
popular brasileira. Também é óbvio que eles sequer sabem o significado de ficção
literária. Nem ao menos conseguem discernir entre autor e história (ou estória,
como gostávamos antes). É esse tipo de pessoa que ataca atores na rua por raiva
de seus personagens na novela da moda.
Fragilidade intelectual. Desapego à
cultura.
Não, indignados manifestantes: não se
trata de autobiografia de Chico. É apenas um relato ficcional como tantos
outros. Brilhante, porém, como o resto da obra do autor.
Não, desavisados, Chico não é uma lésbica
quando canta “O meu destino é caminhar assim, desesperada e
nua. Sabendo que no fim da noite serei tua”. Nem mesmo a sua
prostituta namorada ao proferir “O meu destino é caminhar assim, desesperada e
nua. Sabendo que no fim da noite serei tua” .
Também não é uma escrava submissa quando confessa "E também pra me
perpetuar em tua escrava que você pega, esfrega, nega, mas não lava”.
Se em “Tua Cantiga” o
personagem é quase um capacho por amor, o outro (ou outra) revela a consciência
fria da traição em “Te perdoo porque choras quando eu choro de rir, te perdoo por
te trair”.
Sinto decepcionar, mas
o autor também não possui um cavalo, menos ainda um que fale inglês ou carrega
consigo “chave, caderneta, terço e patuá” que recebera de presente.
A obra de um dos mais
importantes intelectuais brasileiros estende-se também em “O Irmão Alemão”, “Leite
Derramado”, “Budapeste” e tantos outros. Nenhum é autobiográfico, ainda que
possa conter traços de sua vida. São obras que precisam ser entendidas como
produção livre do autor, sem preconceitos, limitações ou inúteis rótulos.
Não, indignados
manifestantes, tudo isto é ficção literária, os personagens são de livre criação,
passíveis de cair no gosto de cada um ou não. Mas a confusão entre autor e
criação é mais que inadmissível, é uma confissão de pobreza cultural.
https://www.youtube.com/watch?v=agH2bBnNUCs