domingo, 27 de agosto de 2017

O NOVO DISCO DE CHICO BUARQUE E A POBREZA CULTURAL




O macarthismo, de triste lembrança, reacende seus pavios de vez em quando. O mote pode ser político, ideológico, racial, enfim, qualquer das vertentes que o radicalismo e a intolerância podem utilizar.

Vivemos o mundo dos rótulos e das análises rasteiras, onde padrões subjetivamente estabelecidos são lançados para standartizar pessoas e comportamentos. É a apoteose da burrice e da superficialidade.

O mais recente exemplo consiste na polêmica em torno do novo disco de Chico Buarque, particularmente com relação à música “Tua Cantiga”.

Mentes menos acuradas indignaram-se com o verso:

Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir”
  
Pronto. Isto é suficiente para taxar o compositor cuja carreira já conta com meio século, de machista. É óbvio que os autores de tais críticas desconhecem a carreira do maior letrista da música popular brasileira. Também é óbvio que eles sequer sabem o significado de ficção literária. Nem ao menos conseguem discernir entre autor e história (ou estória, como gostávamos antes). É esse tipo de pessoa que ataca atores na rua por raiva de seus personagens na novela da moda.

Fragilidade intelectual. Desapego à cultura.

Não, indignados manifestantes: não se trata de autobiografia de Chico. É apenas um relato ficcional como tantos outros. Brilhante, porém, como o resto da obra do autor.

Não, desavisados, Chico não é uma lésbica quando canta “O meu destino é caminhar assim, desesperada e nua. Sabendo que no fim da noite serei tua”. Nem mesmo a sua prostituta namorada ao proferir “O meu destino é caminhar assim, desesperada e nua. Sabendo que no fim da noite serei tua” .

Também não é uma escrava submissa quando confessa "E também pra me perpetuar em tua escrava que você pega, esfrega, nega, mas não lava”.

Se em “Tua Cantiga” o personagem é quase um capacho por amor, o outro (ou outra) revela a consciência fria da traição em “Te perdoo porque choras quando eu choro de rir, te perdoo por te trair”.

Sinto decepcionar, mas o autor também não possui um cavalo, menos ainda um que fale inglês ou carrega consigo “chave, caderneta, terço e patuá” que recebera de presente.

A obra de um dos mais importantes intelectuais brasileiros estende-se também em “O Irmão Alemão”, “Leite Derramado”, “Budapeste” e tantos outros. Nenhum é autobiográfico, ainda que possa conter traços de sua vida. São obras que precisam ser entendidas como produção livre do autor, sem preconceitos, limitações ou inúteis rótulos.  


Não, indignados manifestantes, tudo isto é ficção literária, os personagens são de livre criação, passíveis de cair no gosto de cada um ou não. Mas a confusão entre autor e criação é mais que inadmissível, é uma confissão de pobreza cultural.


https://www.youtube.com/watch?v=agH2bBnNUCs

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